Ocupações resgatam história profunda de Belo Horizonte. Por frei Gilvander Moreira[1]
Ocupação Maria do Arraial, do MLB, à rua da Bahia, 1065, no hipercentro de Belo Horizonte, MG. Foto: Edinho, do MLBLutar
pelo resgate da história profunda das cidades é imprescindível. Na madrugada do
dia 28 de julho último (2023), o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas
(MLB), com cerca de 250 famílias, ocupou um prédio de dez andares abandonado há
muitos anos, à rua da Bahia, 1065, no hipercentro da capital mineira. A
Ocupação foi batizada de Maria do Arraial. Por que e para quê? Para resgatar a
história real e profunda da capital mineira. Dona Maria do Arraial foi mulher
negra escravizada, conhecida como “Maria Papuda”, que teve seu rancho demolido
e sua família expulsa para se construir na localidade o suntuoso Palácio da
Liberdade, sede do governo de Minas Gerais, e o conjunto de prédios públicos e
palacetes que compõem a Praça da Liberdade e arredores. Foi um grave ato de
racismo ambiental no antigo Arraial do Curral Del Rey, que infelizmente
reverbera até os dias de hoje de várias maneiras na cidade e que marca o plano
inicial de instalação da cidade Belo Horizonte.
Belo Horizonte surgiu onde se assentava o antigo Curral Del Rey, destruindo os seus antigos casarios, arruamentos, largos e benfeitorias, incluindo os territórios ocupados por quilombolas, camponeses, ciganos e carroceiros. O antigo Largo do Rosário, composto por antiga igreja, cemitérios e casarios, que existia em um sítio onde hoje se situa o cruzamento das ruas Bahia com Timbiras, teve o seu território invadido e demolido no final do século XIX, e a Irmandade do Rosário e o povo negro que ali viviam foram expulsos do seu território sagrado e ancestral.
Largo do Rosário em 1895 no Curral Del Rey, com capela que era lindíssima e dois partidos. Ao fundo, a Serra do Curral estava intacta: Foto: Museu Abílio Barreto, de Belo Horizonte, MGOs denominados “Quilombos Urbanos” de Belo Horizonte – Mangueiras, Luízes, Manzo Ngunzo Kaiango e Souza e outros em processo de autorreconhecimento – eram na verdade Quilombos camponeses ou rurais, que com o crescimento de Belo Horizonte e a especulação imobiliária, foram invadidos, sendo os quilombolas expropriados de seus territórios e expulsos para as vilas e favelas na periferia. Os carroceiros, agora perseguidos e criminalizados, têm sido imprescindíveis desde o início da capital mineira para carregar mercadorias e pessoas nas carroças, a partir da Estação do Trem, para transportar pedras para calçar ruas, limpeza urbana etc. Entretanto, uma lei racista, higienista e desumana foi aprovada e sancionada em Belo Horizonte, em 2021, proibindo o trabalho de quase dez mil carroceiros/as na capital mineira. Brutal violência que ignora e pisoteia nos direitos do Povo Carroceiro, que é Povo e Comunidade Tradicional, presente e atuante em todas as cidades do Brasil, prestando serviços imprescindíveis, tais como recolhimento de pequenas quantidades de resíduos e limpeza do ambiente, gerando renda para famílias oriundas do campo, evitando dengue, chikungunha etc.
Dona Vilma, mulher negra que nasceu no
bairro Santo Antônio, enfrentou durante muitos anos processo de reintegração de
posse movido pela prefeitura de Belo Horizonte, porque o casebre dela ficou
ilhado por prédios de todos os lados. Foi preciso muita luta popular para
convencer a Prefeitura de Belo Horizonte e o Poder Judiciário a compreenderem e
reconhecerem que o marido da dona Vilma tinha sido um dos construtores de
várias ruas de Belo Horizonte.
A escritora Conceição Evaristo nasceu e
cresceu em uma favela no alto da Avenida Afonso Pena, onde hoje é o bairro
Anchieta. Enfim, Belo Horizonte foi construída com trabalho e suor do povo
negro e tradicional, severamente perseguidos e discriminalizados.
Atualmente, segundo dados da Prefeitura
de Belo Horizonte, no centro da cidade, dentro do perímetro da Avenida do
Contorno, existem cerca de 80 prédios abandonados. Por outro lado, segundo a
Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte há um déficit habitacional quantitativo
e qualitativo que ultrapassa 100 mil moradias. Em Belo Horizonte, mais de 10
mil irmãos e irmãs nossos estão em situação de rua. Portanto, está de parabéns
o MLB por ter ocupado dois prédios ociosos e abandonados há muitos anos e por
estar resgatando a história real e profunda da capital mineira. Vivam as
Ocupações Carolina Maria de Jesus e Maria do Arraial!
Como “nem tudo que reluz é ouro”, em
todas as capitais e grandes cidades muitos prédios e ambientes luxuosos são
construídos em cima de trabalho escravo, à custa de muito suor e até sangue. O
Rio de Janeiro, por exemplo, foi construído em cima de massacre de vários povos
indígenas. Em Brasília, vários trabalhadores foram sepultados com concreto nas
fundações de prédios da Esplanada dos Ministérios. Muitos trabalhadores foram
mortos por se rebelar diante das violências que sofriam.
Resgatar a história real e profunda de
todas as cidades é imprescindível para construirmos cidades realmente
sustentáveis e democráticas. Em Belo Horizonte, segundo o Projeto Manuelzão, mais
de 200 córregos e rios foram sepultados para construir sobre eles ruas e
avenidas. Não é por acaso que em todo início de ano, com as chuvas surgem
inundações em Belo Horizonte. Se o caminho das águas é obstruído, óbvio que a
força das águas se manifestará. Somente nos últimos 15 anos a prefeitura de Belo
Horizonte demoliu mais de 40 mil moradias para “construir moradias para
automóveis”: alargar avenidas, construir viadutos e estacionamentos. Até quando
se respeitará mais a dignidade dos automóveis que a dignidade humana?
Segundo
estudos da Comissão que planejava a nova instalação da capital de Minas Gerais,
após Ouro Preto, havia mananciais na região do Curral Del Rey capaz de
abastecer uma cidade de até 3.000.000 de pessoas. Belo Horizonte tem hoje cerca
de 2,4 milhões de habitantes, mas com as 34 cidades que compõem a Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a população chega a 5,9 milhões de
habitantes. Muitos mananciais que abasteceram Belo Horizonte e outras cidades
da RMBH já foram dizimados, tais como os mananciais da Pampulha, de Águas
Claras e o rio Paraopeba, que era responsável por 50% da água que abastecia Belo
Horizonte e foi sacrificado pela mineradora Vale S/A, com o crime ocorrido em
Brumadinho.
Os movimentos
sociais e ambientais apontam o caminho a ser seguido para que as cidades não
continuem reproduzindo políticas de violência e de perseguição cada vez mais
brutais contra o seu povo, suas águas e os demais seres viventes.
Em tempo:
Iniciou-se dia 31/07/2023, uma série de 17 Audiências Públicas para se fazer
atualização do Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI da RMBH).
Pelo tamanho e importância da metrópole, o desenvolvimento do Plano
Metropolitano PDDI deve ser um processo que fortaleça a institucionalidade da
RMBH e o histórico de planejamento que a Região Metropolitana desenvolveu,
principalmente ao longo dos últimos 20 anos, o processo participativo, para
além dos ritos previstos como audiências públicas, é fundamental para garantir
a governança metropolitana. A Agência Metropolitana tem papel fundamental neste
processo. Os interesses metropolitanos devem ser priorizados, bem como todo o
escopo de diagnóstico já produzido no PDDI há 10 anos. Plano Diretor este
produzido em um ambiente que envolveu milhares de pessoas no processo
participativo e que ficou engavetado e não foi aprovado na Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Garantir preservação ambiental, frear
drasticamente a mineração devastadora, apostar nos meios multimodais de
mobilidade e implementar políticas públicas de moradia popular adequada são
questões imprescindíveis na atualização do PDDI da RMBH, o que implica em
abortar o famigerado rodoanel, que, se construído, será de fato Rodominério,
infraestrutura para se ampliar mineração em Belo Horizonte e Região Metropolitana de Belo Horizonte, o
que não é mais suportável. Urge decretarmos Mineração Zero em Belo
Horizonte e RMBH. Do contrário,
estaremos construindo a desertificação da RMBH com a exaustão hídrica e
sufocamento da agricultura familiar. Sem água e alimento não há como viver.
02/08/2023.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto
tratado, acima.
1 - Nasce Ocupação Maria do Arraial no Centro
de BH/MG em um grande prédio abandonado: luta por moradia
2 - “Ocupação
Maria do Arraial, do MLB, no centro de BH/MG, resgata história profunda de
BH." (Alenice)
3 - Mães
e crianças: Ocupação Maria do Arraial, do MLB, à Rua da Bahia, 1065, centro de
BH/MG: SOCORRO!
4 - No
Centro de BH/MG, Ocupação Maria do Arraial, do MLB: 250 famílias ocupam prédio
abandonado
5 - Leo
Péricles/UP na luta da Ocupação Maria do Arraial do MLB no centro de BH/MG:
luta por moradia v.2
6 -
Cresce Rede de Apoio à Ocupação Maria do Arraial, do MLB, à Rua da Bahia, 1065,
centro de BH/MG. v.4
7 - Leo
Péricles, Edinho e Coord. do Pingo D’Água apoiando a Ocupação Maria do Arraial,
do MLB, de BH/MG
8 - Adrian
do RJ apoiando a Ocupação Maria do Arraial, do MLB, no centro de BH/MG: “Só c
luta coletiva!"
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma,
Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas;
prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo
Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com
, www.brasildefatomg.com.br
, www.revistaconsciencia.com
, www.racismoambiental.net.br
e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com
– www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
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